
Certa noite anos atrás, bebendo bons whiskies com alguns conhecidos e outras pessoas que estava conhecendo naquele então, durante uma rodada de Clynelish 14 anos um dos presentes disse algo como:
“Passei a vida achando que whisky era ruim, mas isso é porque eu ainda não tinha bebido whisky bom!”
Todos soltaram gritos entusiasmados, erguerem os copos e brindaram.
“Quando você começa a beber whisky de verdade não consegue mais beber aquelas porcarias”
Outro disse, sendo recebido por mais gritos e brindes.
Eu estava lá no meio, mais segurando o copo e sentindo as pancadinhas – tim tim! – do que brindando. Estava sorrindo mas me sentindo um pouco desconfortável, era como se um segredo sujo, escondido em algum lugar de repente começasse a se remexer na escuridão querendo vir à tona.
Pois é, eu gosto de blends.
“Sim, existem blends muito competentes no mercado, olha o exemplo da Compass Box ou do Chivas 25 anos.”
Perfeito! A Compass Box é excelente, tem garrafas melhores, garrafas piores mas de fato produz blends excelentes, e o Chivas 25 é um ícone, mas não é disso que eu estou falando. Eu gosto de blends normais, gosto de whiskies de supermercados! E nem precisam ter 12 anos. Diabos! Eles nem precisam custar mais de R$100,00 reais.
A primeira garrafa de whisky que comprei na adolescência, com suado dinheiro conseguido vendendo lição de casa na escola, foi um Vat 69. Entrei com ela escondida em casa, coração disparado, aquela mistura de medo e excitação e aquela atitude de “o que eu faço com isso, agora que consegui trazer para o meu quarto?”. Quantos outros adolescentes deveriam estar com o mesmo dilema naquele exato momento? Muitos! Claro que no caso deles o dilema provavelmente envolvia outros adolescentes e não garrafas verdes.
Há uns 4 anos, em 2017, estava passando por uma padaria de bairro e vi atrás do balcão do caixa, escondido entre garrafas de Passaport e Old Eight, um Vat 69. Devo ter pago quase R$50,00 reais nela, um valor mais baixo do que o número estampado no rótulo, e a bebi em uma noite na companhia de um amigo enquanto relembrávamos os whiskies de outrora ou e pessoas de outrora que bebiam whisky.
Mas deixando a nostalgia de lado, blended whiskies são fascinantes e não me refiro ao fato de que mais de 90% dos whiskies vendidos no mundo são blends – isso só faz com que pareçam o Silvio Santos ou o Faustão das bebidas, coisas criadas para o consumo das massas mas sem conteúdo – ou que foram eles que popularizaram a bebida e hoje só temos single maltes nas estantes por sua causa – isso só faz com que pareçam aqueles barbeiros cirurgiões medievais que tentavam curar tumores com sanguessugas e dores de dente com amputações e eventualmente deram lugar aos médicos de verdade hoje.
Eu acredito que o maior problema dos blends surge quando tentamos jogar todas as garrafas que tem o nome whisky, ou whiskey, impresso no rótulo no mesmo balaio e ai começamos a comparar uma com a outra. Um blend está tão próximo de um single malte quanto um single maltes está de um bourbon. O blend tem ingredientes diferentes em sua composição, parte deles é produzido através de processos e equipamentos diferentes, é claro que ele vai ter sabor e características diferentes daquele Clynelish 14 anos, mas até ai um Pappy Van Winkle também terá.
Um whisky Chivas 12 anos é um blend, ele é o resultado da mistura de outros tantos whiskies, entre 35 e 50 deles, combinados em proporções meticulosamente elaboradas e cuidadosamente misturadas – parte delas single maltes e parte whiskies de grãos. É um blend muito bom, desde sua versão de 12 anos até suas personificações mais luxuosas. Bebendo um copo de Chivas muitas pessoas podem parar para pensar na complexidade e profundidade, no sabor e aroma da bebida e pensar que a garrafa tem um ótimo custo benefício pelo que oferece. Outros podem não entender como alguém vê graça nesse “tipo de whisky” e que ele é caro demais para o que se propõe – tranfomar uma Coca Cola, energético ou água de côco em uma bebida alcoólica.
Geralmente quando eu bebo um Chivas o que se passa na minha cabeça é: por que alguém se dá ao trabalho de caçar mais de 40 whiskies diferentes e então passar semanas ou meses diluindo amostras, cheirando amostras, combinando elas de diferentes maneiras para ver se funcionam juntas e por fim engarrafar torcendo para se tornar um sucesso comercial?
Obviamente poder passar dias ou semana bebendo centenas de whiskies diferentes e ser pago para isso pode ser parte da resposta. Mesmo assim: você está pegando centenas de bebidas prontas para fazer uma nova bebida e torcer para ser boa. WTF?!
“O whisky irlandês era mais leve e fácil de beber do que o escocês, assim buscaram uma bebida mais leve e delicada para agradar a todos.” Ou “No início de sua produção o whisky ainda era grosseiro e tinha um sabor muito forte, já que mal era diluído, os blends foram criados para ser mais agradáveis e palatáveis”, “Os whiskies antigos não tinham volume regular, consistência e muitos era difíceis de beber, por isso criaram blends mais suaves e consistentes.”
Não sei quanto a vocês, mas imagine aquele bando de brutos achando um whisky “difícil de se beber”.

E quanto à inconsistência… se é difícil conseguir padrão de uma destilaria, o que dizer de pegar whiskies inconsistentes de várias destilarias para tentar se criar um padrão? “Uhmmm já que um gato não me obedece, vou criar uma agência de correio de gatos porque em maior número eles vão ser obrigados a me acatar!”
O meu copo de Chivas permaneceu indiferente às minha indagações, tal qual um gato convocado para entregar cartas. Para buscar minha resposta tive que procurar em outro lugar.
Índice
1- Salada, porque nenhum bom whisky começou com carne
2- Destilação: de “Uga buga” até “Batido, não mexido”
3- O nome é Coffey, Æneas Coffey!
4- A ascensão da casa de Usher
5- Blended Whisky: ame-o ou aprenda a amá-lo
6- Os filósofos renascem das cinzas
7- Bônus
1- Salada, porque nenhum bom whisky começou com carne
Uma frase que muitos entusiastas da aqua vitae escocesa gostam de ler e vestir é “WHISKY, porque nenhuma boa história começou com alguém comendo salada!”, eu mesmo já a usei em alguns textos meus. Ironicamente a história do whisky começa com uma salada, ou pelo menos com um ingrediente de salada: a cevada.
A cevada não é apenas um grão, ela é uma semente e sementes são uma obra de arte de engenharia da natureza. Elas contém o potencial para criar um ser vivo completo e possuem em si um estoque de alimento para manter esse ser forte e saudável independente do ambiente que o cerque, além disso vêm com um laboratório químico embutido para transformar esse estoque todo em um prato que a futura planta consiga digerir e são revestidas por uma couraça muito resistente que as protegem das intempéries do mundo exterior, seja esse mundo qual for. Elas também são sinistras como vampiros que podem ficar dormentes por muito, MUITO, tempo e ainda assim despertar quando sentem o cheiro de sangue fresco – no caso da semente água – e a temperatura estiver correta.
Sementes de Silene stenophylla com mais de 31.500 – trinta e um mil e quinhentos – anos conseguiram ser germinadas e dar flores.
Sementes também são capazes de suportar abusos extremos e sair andando como se nada fosse. Quando sementes de Arabidopsis thaliana (agrião) and Nicotianum tabacum (o bom e velho tabaco) foram expostas a radiação ultra violeta por um ano e meio do lado de fora da Estação Espacial Internacional, 23% delas foram capazes de produzir plantas quando retornaram para a Terra.
Será que alguém já pensou que sementes seriam ótimos veículos espaciais alienígenas que poderiam ser utilizados na invasão e colonização de outros planetas?

Mas voltado ao nosso planeta, o que torna a semente interessante é sua estrutura básica, aqui mostrada em detalhes científicos:

Quando pensamos em whisky a parte da semente que nos interessa é esse estoque de amido, esse Macdonald’s portátil dentro dela, porque isso é a base de açúcar que vai virar álcool. Além de conquistadoras espaciais cada semente vem com um pequeno bar em potencial embutido em seu interior.
O objetivo das destilarias é usar todo esse amido para fazer um caldo doce e então usar uma levedura – popularmente conhecido como fermento orgânico – para transformar o açúcar desse caldo em álcool, mas para fazer isso elas tem que removê-lo de dentro do cofre em que ele se encontra e fazer isso é como adoçar um copo de limonada. Se você pegar um saquinho de açúcar e jogar ele dentro do copo você pode até conseguir adoçar um pouco seu suco, mas a maior parte do açúcar vai continuar dentro do envelope encharcado. Você teria que jogar um monte de saquinhos no copo e ficar mexendo eles por muito tempo para ter um suco adoçado pelo açúcar que atravessasse o papel molhado – e terminaria com um copo cheio de gororoba de papel intragável. A melhor solução neste é a mais simples: rasgar o saquinho e jogar o açúcar puro na bebida.
A relação da levedura com a cevada é a mesma, ela não consegue “comer” a casca da semente e a quantidade de amido que sairia na água seria muito baixa para fazer diferença. Então podemos moer as sementes e colocar em água quente para seu conteúdo se diluir e virar janta de fungo. Só que esse amido não é o açúcar mais interessante ainda, ele não é o açúcar mais “fermentável” e ai entra outro truque da natureza, a malteação.
Fazer malte é simplesmente mostrar para a semente quem é que manda. Você engana ela e a faz pensar que está em um belo jardim pronta para virar uma planta e viver sua vida, quando na verdade ela está sendo encharcada de água dentro de um tanque. Quando a semente começa a germinar ela libera enzimas que tem como propósito transformar o amido em um açúcar mais amigável para ser consumido.
Para ter uma ideia veja as fotos abaixo. Elas vieram do canal Shineology do youtube, que ensina a fazer Bourbon na sua cozinha. A imagem da esquerda é a mistura de água quente, milho e centeio, veja o mingau grosso que se forma, é quase um patê, cheio de amido grudento mas isso ainda não é ainda a melhor refeição para leveduras. A imagem da direita são momentos após se colocar malte na mistura, ela derrete e se liquefaz, fica perfeita para a levedura trabalhar.

Na produção de whisky escocês é utilizada apenas a cevada, mas as imagens seriam semelhantes entre a cevada em grão apenas moída e a maltada. Amido puro vira purê engrumado, enzima de malte derrete o purê.
Agora esse blá blá blá todo vai ficar interessante. Apesar de parecer magia, a destilação é um processo mecânico simples, um método utilizado para separar um líquido que está dissolvido em outro. É importante entender que ela apenas separa o que já existe, ela não cria nada novo, muito menos álcool.
Se você prepara 100 litros de fermentado que termina com um mosto que tem 15% de álcool, isso significa que você tem diante de si 100 litros de mosto composto por 15 litros de álcool e 85 litros de líquido só que tudo misturado, a destilação não vai aumentar a quantidade de álcool, ela vai diminuir a quantidade de líquidos.
Uma primeira destilação pode te dar uma mistura que chega a 25% de álcool – isso são aqueles 15 litros originais diluídos em 45 litros de bebida não alcoólica, antes você tinha um total de 100 litros de mistura, agora tem 60.
A segunda destilação te deixa com um resultado de 60% de álcool ou seja 25 litros total de bebida (os 15 litros de álcool e 10 litros de líquido que é água misturada com amido não fermentado, com leveduras e tudo o que foi produzido até aqui). Este, resumidamente, é o seu new make spirit ou se preferir seu destilado novinho em folha pronto para ir ao barril. O restante da água foi descartado junto com qualquer parte sólida. Esses números não são exatos, mas são uma aproximação boa, veja que no exemplo você começa com 100 litros de algo e termina com 25, mas a quantidade álcool é a mesma em ambos. Outro ponto importante é que para transformar aquela “cerveja” inicial em whisky, usando destiladores tradicionais de caldeira, também conhecido como “pot still”, você precisa destilar ao menos 2 vezes.
Se o que você destilou foi cevada maltada o que vai sair é destilado de malte. Se usou cevada não maltada ou qualquer outro grão como milho, trigo, centeio, arroz, etc… o que vai sair é destilado de grãos. Quem dá o nome para a bebida que vai ser vendida é a garrafa onde ela vai ser envasada. Se dentro da garrafa entrar apenas destilado de uma única destilaria você tem uma garrafa de single. Se o que entrar tiver sido destilado em duas ou mais destilarias você tem uma garrafa de blend. Simples assim.
Claro que na Escócia o destilado tem que passar pelo menos 3 anos dentro de um barril para ser chamado de whisky. Se você engarrafar destilados de malte envelhecidos pelo menos 3 anos de uma única destilaria você tem um single malte, se engarrafar destilados de grãos de uma única destilaria tem uma garrafa de single grain. Da mesma forma se forem maltes de duas ou mais destilarias você tem um blended malte, se forem apenas grãos você tem um blended grain e finalmente se misturarem maltes e grãos de duas ou mais destilarias você tem uma garrafa de blended whisky. Se todos esses destilados passaram pelo menos 12 anos no barril você tem aquela garrafa de Chivas. Existem peculiaridades que deixam essa divisão mais complexa, mas para sua sorte elas não serão discutida aqui, fica para um próximo artigo.
Saladas são assim. Meio chatas, meio sem graça – mesmo quando se tempera com um vinagrete de framboesas e tem tomates secos – mas são boas para fazer o organismo funcionar e abrir o apetite. Agora que acabamos com ela vamos para o prato principal: a história dos Blended Whiskies, talvez ela não seja tão empolgante quanto Game of Thrones… mas talvez seja.
2- Destilação: de “Uga buga” até “Batido, não mexido”
No artigo A História do Whisky vimos em detalhes exaustivos como a raça humana conseguiu transformar mato em bênção engarrafada, agora vamos ver em detalhes exaustivos a evolução da tecnologia que tornou isso possível. Do surgimento das primeiras civilizações até o alvorecer da era moderna os alambiques estiveram conosco, nos observando, nos guiando, nos transformando. Se pudéssemos resumir a primeira parte deste capítulo em uma imagem, seria esta:

Por volta de 3.500 a.C. os sumérios já brincavam de evaporar e condensar líquidos para refinar substâncias e conseguir extrair óleos essenciais de ervas. A tecnologia ainda era, como é de se imaginar, bem primitiva.
A coisa funcionava mais ou menos assim: o destilador era aquecido suavemente e o líquido evaporava se condensando na tampa mais fria. As gotículas condensadas escorriam e eram coletadas no aro onde o material orgânico – como folhas e ervas – era extraído pelo líquido (primeiro alambique na parte superior esquerda da imagem). Mas esse processo não era usado apenas para se conseguir óleos e perfumes, os povos antigos também o utilizavam para fazer asfalto e alcatrão de madeira, que eram muito populares como vedante muito antes de se tornarem estradas, se você fosse construir algo que precisasse deixar a água de um lado e um ambiente seco do outro, como um barco ou um navio, você usava asfalto ou alcatrão vindo de destiladores. Diz a lenda que o cesto onde colocaram Argão de Acádia, o cesto de Moisés e até a arca de Noé foram vedados com essas substâncias.
Esse não era o único motivo pelo qual os alambiques primitivos eram tão estimados pelos marinheiros, eles também o utilizavam para produzir água potável em seus navios, a água do mar evaporava por radiação solar e se condensava em um velo de lã úmido. Um exemplo é o que está no canto superior direito da imagem.
À partir de 300 a.C. Alexandria se tornou o centro científico do mundo antigo e com sua universidade e sua biblioteca se estabeleceu como mediadora entre a cultura oriental e ocidental até o século VII de nossa era. Foi lá que, no século I d.C., nasceu a Escola de Alquimistas que sistematicamente coletou e desenvolveu o conhecimento químico contemporâneo ajudando a aperfeiçoar os equipamentos utilizados na época.
Um dos upgrades que os alquimistas deram no alambique foi a inserção de conexões tubulares através do qual o líquido condensado podia fluir continuamente. Também aumentaram a capacidade de funcionamento e seu desempenho, desenvolvendo processos para que frações da destilação pudessem ser coletadas separadamente. Moveram o aro de coleta para a tampa e assim a parte quente do alambique foi separada da parte fria, o deflegmador, a seção onde se realiza a deflegmação ou destilação. As diferentes partes passaram a ser seladas com cal úmida, argila, lã e outras fibras naturais. Também começaram a experimentar novos materiais para sua fabricação como vidro e metal. É a evolução que a imagem mostra.
Foi a época de ouro da indústria farmacêutica antiga, de óleos essenciais de ervas a óleos leves e alcatrão utilizado na industria de construção naval e civil do mundo antigo, tudo passava pela tromba do alambique.
Mas, como dizem, tudo chega a um fim. A Biblioteca de Alexandria foi vítima de um grande incêndio no ano de 48 a.C. quando a cidade foi atacada pelo imperador Júlio César. No século II a cidade foi palco de rebeliões populares que acabam por destruir o seu patrimônio. Em 215 d.C. a cidade foi saqueada pelo imperador romano Caracala (188-217) – e a gente pensando que arrastão é uma modinha moderna.
Como se não bastasse houve um terremoto em 365 e finalmente quando o cristianismo se tornou a religião oficial do Império Romano, a biblioteca foi invadida e incendiada por cristãos que destruíram os livros que não estavam de acordo com sua fé. Se um alexandrino houvesse sequestrado a filha de Lian Neeson para vendê-la como escrava sexual a desgraça que se abateria sobre a cidade não seria pior.

Ao período alexandrino de destilação se seguiu o árabe e até o século XIII d.C. não houve muitas novidades. Os alambiques, já feitos de vidro e metal, eram usados principalmente para se produzir perfumes, água de rosa e óleos, cujo principal propósito era o uso medicinal e culinário. Os dois maiores centros de preservação da tecnologia da destilação eram Bagdá no leste e Cordoba no oeste.
Nessa mesma época algo começava a se agitar na Europa. No sul a escola médica de Salerno começava a aperfeiçoar os processos de destilação, em Veneza as conexões comerciais e a arte de soprar vidro eram combinadas, nas cidades mouriscas da Espanha vários livros de química começavam a ser traduzidos do árabe para o latim, se espalhando por todo o continente. E, claro, havia os cruzados retornando de suas “viagens” trazendo consigo conhecimentos de tecnologia e ciência do oriente.
O álcool se popularizou na Europa e seu poder parecia universal. Uma bebida revigorante, um anestésico potente, servia como desinfetante e como base para se preparar um sem número de outras substâncias. Foi ai que ele recebeu o famoso nome de aqua viate. Alberto, o Grande, também chamado de Albertus Magnus, era um fã. Ele afirmava que a destilação era o processo mais importante da alquimia, “o alquimista requer dois ou três quartos exclusivamente dedicado a sublimações, soluções e destilações”. Se na Grécia antiga as ervas eram misturadas e maceradas no vinho, agora sua essência era arrancada em alambiques e misturadas a álcool muito mais potente.
No século XIV os processos de destilação foram classificados em dois métodos: per ascensum (ascendente) e per descensum (descendente), classificações que perduraram até os século XVIII. A principal diferença entre ambos é que o método ascendente segue o caminho do vapor e é utilizado em quase todos os processos atuais. Já o método descendente era usado principalmente em destilações a seco de substâncias sólidas como madeira, cascas e ervas, e hoje em dia raramente é usado.
E então veio Gutenberg e jogou gasolina na fogueira, o circo não pegou fogo: ele explodiu. A invenção da prensa de tipos móveis revolucionou a maneira com que o conhecimento circulava pela Europa. Se antes livros eram raros e exclusivos, agora começavam a se popularizar.
As “profissões” da época eram como clãs, se você fosse um pedreiro fazia parte de um clã de pedreiros, se fosse um tecelão, fazia parte de um clã de tecelões, se fosse um operador de máquinas fazia parte do clã de operadores de máquinas, os comacinos. O conhecimento que esses “clãs” ou guildas mantinham de seus ossos do ofício eram segredos tão bem protegidos quanto cobiçados, se você aprendia como erguer uma catedral não ia sair contando as técnicas para qualquer um, assim se precisassem de uma nova só poderiam falar com uma pessoa: você! Bye bye concorrência. Mas como uma pessoa não conseguia erguer uma catedral sozinha ela começava a recrutar “empregados” que iniciavam suas carreiras como aprendizes, jurando não revelar o conhecimento que recebiam – se sujeitando a penas horrendas se o fizessem como ter a língua arrancada e cauterizada com ferros em brasas. Com o tempo eles progrediam na empresa até virarem mestres.
A cada promoção você passava por iniciações de aprendizado e novos juramentos de segredo, tinha acesso a novas informações e uma participação maior nos ganhos. Isso parece soar familiar? Muito da mitologia de sociedades secretas vem dai. Maçons, alquimistas, místicos esotéricos… todos nasceram de tradições semelhantes a essas, tradições de segredos de uma época em que a ciência e a filosofia e a religião eram algo indivisível.
O que Gutenberg fez foi acabar com o segredo. Logo vários físicos, engenheiros, matemáticos e químicos começaram a publicar livros. A ideia de que a revolução industrial só foi possível porque um pedreiro aprendeu a ler pode ser uma simplificação mas não é simplista. Se antes havia 3 ou 5 cópias de um livro de alquimia, escritas e ilustradas à mão, espalhadas pela Europa, agora eram centenas circulando por cada país. Um dos efeitos colaterais dessa avalanche de publicações é que as línguas locais começaram a ser usadas para espalhar esse conhecimento, o que antes era exclusividade do Latim agora surgia em francês, inglês ou alemão e isso tornava tudo muito mais acessível a muito mais habitantes locais, você não precisava mais ser rico, nobre ou monge para aprender algo novo, bastava que soubesse ler sua língua nativa. Era como se uma pessoa comum que gostasse de whisky pudesse, de repente, começar a publicar suas ideias para quem mais quisesse ler ao redor do globo, imagine que tipo de selvageria isso poderia trazer para o mundo.
Michael Puff von Schrick (1487), Hieronymus Brunschwygk (1500), Philip Ulsted (1526) e Walter Ryff (1545) se tornaram os popstars do alambique, publicando em detalhes o design de seus equipamentos, seus métodos de destilação e até receitas para produzir água destilada de plantas e animais. Farmacêuticos e boticários tiveram acesso a práticas de destilação com as quais seus antepassados jamais sonharam e começaram a construir alambiques em seus quintais no meio de suas ervas.

Esta gravura vem da página de título do livro de Brunschwygk, Das Buch der rechten Kunst zu distillieren, publicado em Estraburgo no ano de 1500. Nela vemos duas configurações diferentes de destilação: um alambique Rosenhut com um homem enchendo um frasco vazio aparece no canto superior esquerdo. O Rosenhut é uma invenção medieval, um capacete cônico para melhorar o resfriamento e ajudar a direcionar o vapor.
No canto superior direito um homem está bebendo de uma pequena garrafa, talvez inspirado pelo cervo no meio da gravura. Na parte inferior temos um jardim com inúmeras plantas diferentes que são colhidas por duas mulheres e um homem, há outro homem com uma enxada e no canto inferior direito um jovem com uma coroa de flores na cabeça opera o alambique: com a mão direita ele cuida da temperatura do fogo, com a esquerda ele testa a temperatura da cucúrbita – o recipiente onde se coloca o líquido que se pretende destilar. Temos ai os dois principais produtos da destilação: álcool para beber e para o uso medicinal.
Vamos dar uma acelerada agora.
Em 1555 Conrad Gesner descreve uma destilação de várias etapas para maior pureza. Georg Agricola publica em seu famoso livro De Re Metallica em 1556 descrevendo métodos de destilação e concentração de ácidos minerais, como ácido sulfúrico e ácido nítrico, usados para processamento de minério e separação e purificação de metais, a química começava ficar parecida com a que temos hoje. Com a procura cada vez maior de produtos químicos dessa natureza a produção dos destiladores começou a aumentar e as configurações dos alambiques mudaram para acompanhar a demanda crescente, eles começaram a ser dispostos paralelamente ao redor da fonte de calor – esse método de produção era chamado de Fauler Heinz (Henry preguiçoso) em alemão. Claude Dariot (1533-1594) foi o primeiro a usar vapor como fonte de aquecimento e quase 200 anos depois Jean Pissionier descreveu o primeiro resfriamento de fluxo em contra-corrente.
Nos dois séculos seguintes os alambiques de fundo de quintal se transformaram em instalações de laboratórios completos para estudos químicos e para a produção em grande escala de álcool, produtos médicos, perfumes e ácidos minerais. Em 1595 Andreas Libau descreveu a configuração geral de um laboratório químico, distinguindo os cômodos de acordo com suas funções e operações químicas que abrigavam, ele também já usava um sistema de tubos para canalizar a água que chegava da rua. Os equipamentos também eram classificados de acordo com a direção do vapor – ascendente e descendente – e de sua utilidade como aquecimento ou resfriamento.

Destilação padronizada ainda com alambique resfriado a ar. À esquerda: John French (1651) [23]; direita: Johann Elsholtz (1674) [24] mostrando a configuração do laboratório.
No século XVII Robert Boyle, também conhecido hoje como o pai da ciência, destilou álcool com fragmentos de ácido acético durante dias seguidos e descobriu que o produto final possuía uma concentração de ácido muito maior do que a original. Seu trabalho ocorria em ambientes de vácuo e/ou pressão elevada.
Os conceitos atuais de laboratórios de química foram descritos por Johann Kunckel von Löwenstern, um vidreiro, boticário, e químico experimental, em seu livro Laboratorium Chymicum (1716) onde inclusive mostra sua preferência por equipamentos confeccionados em vidro, um costume que perdura até os dias de hoje.
Se os pedreiros alfabetizados foram os protagonistas da revolução industrial, a industria têxtil foi seu combustível. A demanda por ácido sulfúrico como agente alvejante de tecidos atingia níveis estratosféricos e ele era produzido em alambiques confeccionados de platina.
Mas esse não era o único mercado em expansão, com a colonização do novo mundo a produção e consumo de álcool, rum e cachaça também cresciam e se tornavam importantes mercados comerciais. Nas colônias Britânicas a Sociedade dos Destiladores Retificadores – Society of Rectifying Distillers – foi a responsável pelo desenvolvimento e disseminação desta tecnologia.
Uma mudança tremenda que ocorreu nesta época foi o surgimento do que chamamos hoje de Método Científico. Antes do século XVI tudo o que chamamos de ciência hoje fazia parte da “filosofia natural”. A ideia não era apenas descobrir o como mas por quê de algo funcionar. Os cientistas não procuravam uma maneira mais eficaz de se produzir um ácido ou mesmo álcool, mas como chegar mais parto da essência dessas substâncias, de sua alma. Por isso a produção química em muitos pontos era indissociável da religião, o que motivava o químico era vislumbrar a alma do mundo e não cumprir uma meta de produção.
Stephen Hawking encerrou seu livro “Uma Breve História do Tempo” com um questionamento interessante:
“Até agora, a maioria dos cientistas tem estado ocupada demais com o desenvolvimento de novas teorias que descrevem o que é o universo para perguntar ‘por quê’. Por outro lado, as pessoas cuja tarefa é perguntar “por quê”, os filósofos, não foram capazes de acompanhar o avanço das teorias científicas. No século XVIII, os filósofos consideravam todo o conhecimento humano, inclusive a ciência, como seu campo e discutiam questões como: ‘O universo teve um começo?’ No entanto, nos séculos XIX e XX, a ciência tornou-se técnica e matemática demais para os filósofos, ou qualquer outra pessoa, exceto alguns especialistas. Os filósofos reduziram tanto o escopo de suas investigações que Wittgenstein, o mais famoso filósofo deste século, disse: ‘A única tarefa que resta para a filosofia é a análise da linguagem.’ Que retrocesso da grande tradição da filosofia de Aristóteles a Kant!”
Ele conseguiu resumir de maneira precisa e clara como a alquimia se transformou na química. Como o Uisce beatha se tornou uma bebida alcoólica destilada de grãos, muitas vezes incluindo malte, que foi envelhecida em barris.
No fim do século XVIII a França liderava o campo da química pura, mas a Inglaterra estava à frente no campo da química técno-comercial. Na exibição mundial de química de 1862 a industria química inglesa era a campeã incontestável mas em 1893, na exposição mundial de Chicago, a Alemanha havia tomado a liderança. No início do século XIX a França, ou melhor, Napoleão, resolveu que era a hora de tomar uma atitude e ofereceu uma recompensa para quem conseguisse aprimorar a produção e fermentação de açúcar de beterraba para que ganhassem independência das importações de álcool e açúcar vindas da Inglaterra. Começaram a chover registros de patentes de equipamentos de destilação entre 1801 e 1818.
Jean-Édouard Adam desenvolveu um aparelho descontínuo para destilação fracionada, que foi posteriormente aprimorada por Isaac Bérard para incluir um dispositivo para condensação parcial. Seu trabalho tinha 2 objetivos:
- o enriquecimento de um componente de baixo ponto de ebulição no vapor ascendente e
- o enriquecimento do vapor por condensação parcial e refluxo no alambique patenteado por Jean-Baptiste Cellier-Blumenthal em 1813.
Ambos princípios deram origem ao alambique de destilação contínua. A parte superior da coluna continha pratos de campânulas, ou pratos de grelha, enquanto a parte inferior é estruturada com pratos de metal cônicos que servem para fazer o vapor e o líquido entrarem em contato. Esta configuração serviu de base para todo o desenvolvimento nos 60 anos que se seguiram na França e também influenciou a fabricação de alambiques tanto na Alemanha quanto na Inglaterra e muitos dos detalhes a coluna Cellier foram aprimorados nos anos seguintes. Em 1817 Charles Derosne também construiu um alambique de coluna de capacidade industrial e seu sucesso econômico também dependia de outros produtos industriais como as usinas de açúcar, locomotivas, e outros equipamentos ferroviários.

Neste mesmo ano Heinrich Pistorius patenteou na Alemanha sua usina de destilação para a produção de álcool usando mosto fermentado de batatas, graças a ele o Brandy de batatas se tornou muito popular no país. O alambique Pistorius passou a ser usado amplamente até 1870 e produzia licores com teor alcoólico variando entre 60% e 80%. Formado por dois alambiques com um misturado manual e dois distribuidores cônicos de coluna o aparelho apresentava uma performance baixa de separação.
Em 1822 Anthony Perrier registou a patente de bandejas deflectoras usadas em uma destilaria de whiskey para aumentar o contato entre o vapor e o líquido, muito similares aos pratos de campânula atuais.
E então surge Æneas Coffey.
Hora de encher o copo mais uma vez, ir ao banheiro e, quem sabe, preparar um sanduíche. Eu espero.
3- O nome é Coffey, Æneas Coffey!

De vez em quando, na história de qualquer assunto, surge um nome intrigante que clama por uma explicação e que cedo ou tarde, como o canto de uma sereia, irá atrair aqueles que tem um gosto pelo absurdo. Tal era o nome de Æneas Coffey, o inventor de um destilador de álcool que tinha em seu design os ingredientes básicos de uma coluna de fracionamento.
A genealogia do nome Coffey aponta como um de seus primeiros membros Teighg Coffey ou Teige O’Coffy, conhecido na antiguidade como membro do Set de Cobhtaigh – depois anglicizado como Clã Vitorioso – cuja descendência remonta a muitas gerações, indo de um Enéas para outro Enéas, o da Lança Sangrenta, descendente de Luy, Alias Mac Con, Monarca da Irlanda por volta do século III d.C.
Um segundo estudo aponta Cobhtach como um chefe irlandês de quem a antiga família O’Cobhthaich derivou seu nome e descendência. Eles eram os principais senhores dos territórios mais tarde chamados de Barryroe, leste e oeste, no Condado de Cork.
Ainda há uma terceira fonte que diz que o clã produziu bardos, professores e pregadores, mas nenhum cavalheiro, gentleman, (o que provavelmente se referia ao antigo título de proprietários de terras).
Apesar do nome de Æneas Coffey estar ligado às origens da história da Irlanda, a origem do homem permanece um mistério.
De acordo com um obituário publicado no The Times, dia 30 de novembro de 1852,Æneas Coffey nasceu por volta do ano 1780. O local de seu nascimento? De acordo com os registros históricos de Dublin, vol.9 No.1 de 1946, ele nasceu em Calais, uma cidade do norte da França. De acordo com seu neto, A. H. Coffey, em uma carta enviada a James A. Dore em 1931 Æneas nasceu em Dublin, filho de Andrew Coffey um engenheiro civil.
Quando criança Andrew foi educado por James Dinwiddie, professor de New College em St. Andrews. Ele também foi assistente de Dinwiddie quando este deu uma palestra em Dublin em 1785. Andrew Coffey trabalhou no departamento de águas de Dublin de 1774 a 1832, mas existem evidências de que ele tenha trabalhado em outros projetos fora de Dublin e de que era um funcionário de confiança. O engenheiro William Mylne que trabalhou na Dublin Water Works entre 1777 e 1790, escreveu um relatório onde dizia “acho que é apenas justo de minha parte declarar que Andrew Coffey é um jovem engenhoso que o tempo todo se conduziu com a maior propriedade e foi a única pessoa empregada nas obras em que pude confiar, para facilitar as emergências”. Assim, se algum desses trabalhos de Coffey pai aconteceu no continente, ele pode de fato ter criado uma brecha para, entre outros projetos, ter tido um filho que nasceu na França.
Ainda de acordo com seu neto, Æneas estudou no Trinity College em Dublin. Claro que também não existem registros de sua vida escolar, seu nome não aparece no lista de alunos da instituição – apesar do nome de três de seus filhos estarem lá. Ele pode ter começado sua carreira profissional como assistente do departamento de cobrança de impostos da Gauger and Searcher em 1800, mas não existem registros seus nos arquivos de Dublin e ele pode ter trabalhado na Inglaterra – ou talvez não. O que sabemos com certeza é que em 1808 ele se casou com Sussana Logie.
Coffey teve quatro filhos: Æneas Junior, Phillip, William e Andrew. Phillip por sua vez teve três: Rossanna, Æneas H. e Donald. Esta parte da história conta então com 3 Æneas Coffey, o pai, o filho e o neto, o que acaba gerando algumas confusões de datas e personalidades. Muitas vezes os registros citam um Æneas Coffey, mas estão se referindo a Æneas Junior, outras vezes falam do neto como se fosse o Æneas original, estudar sobre esse homem é como tentar caçar uma agulha numa montanha de agulhas, todas idênticas.
Se tudo o que Coffey tivesse feito em vida fosse aperfeiçoar a coluna de destilação, com certeza seu nome estaria em um pequeno parágrafo no capítulo anterior. Mas o seu envolvimento com whisky foi muito além de uma patente e sua história começa a ficar interessante agora.
Sussana tinha um irmão, Daniel William Logie. Daniel era o superintendente dos fiscais de impostos em Cork e se tornou o Inspetor Geral da cidade de Dublin no ano seguinte, quando isso aconteceu Æneas foi apontado como superintendente de cobrança de impostos de Dublin e em 1810 acabou sendo transferido para o Condado de Donegal e lá ele era o responsável apontado em cargo pelas operações contra destilação ilícita.
Antes de prosseguir temos que ter duas coisas bem claras em mente:
1- Destilar era quase que uma mania na Irlanda, Escócia e Inglaterra, era algo tão popular que o parlamento inglês teve uma ideia brilhante: vamos criar impostos para bebidas destiladas! Era uma ideia óbvia: se todos pagassem quando destilassem, o pais poderia viver bem só coletando impostos de destiladores e assim, em 1644, criaram as primeiras taxas sobre whisky.
É claro que os donos dos alambiques não gostaram da ideia e a distilação ilícita de whisky chegou a números assombrosos, por causa dos impostos cobrados e da recusa em se pagá-los ter uma destilaria clandestina era comparado a um ato de patriotismo anti imperialista, pessoas que não destilavam começaram a destilar apenas para cuspir na cara do rei.
Pelos 150 anos que se seguiram à criação do imposto, a produção e contrabando de whisky se tornaram práticas corriqueiras, não era incomum ouvir sobre padres que escondiam barris de whisky sob o púlpito de suas igrejas e que a bebida era transportada em caixões para evitar os coletores.
Na década de 1820 acreditavam haver mais de 14,000 alambiques clandestinos sendo confiscados todos os anos pelo Reino Unido e mais de 50% do whisky consumido na Escócia era ilegal.
2- De acordo com a tradição irlandesa não apenas o whisky, mas a destilação foi inventada na Irlanda no século XI de maneira independente do resto do mundo.
Assim os destiladores irlandeses enxergavam a coleta de impostos na produção do que eles haviam inventado como uma abominação, um ato de violência imposto pelo império inglês – que já empurrava suas leis e dominação goela abaixo do povo.
Os irlandeses também poderiam dizer que eles inventaram, de maneira independente do resto do mundo, a briga de foices no escuro. E isso não seria mentira.
A briga entre coletores de impostos e destiladores foi brutal. Em 1818 o Reverendo Edward Chichester escreveu um panfleto endereçado a um membro britânico do Parlamento, afirmando que as angústias e ultrajes – que descreve em detalhes coloridos – foram causados por uma lei opressiva em relação à destilação ilícita. Também fala como a lei favorecia apenas às grandes destilarias obrigando as pequenas a viverem na ilegalidade e eventualmente serem fechadas. Ele também explicava que nos distritos montanhosos da Escócia 14 destilarias pequenas haviam sido licenciadas gratuitamente e isso fez com que a produção ilícita sofresse uma queda significativa na região. Curiosamente apenas destilarias de grande porte hoje tinham licenças na Irlanda, tão diferente da Escócia onde as pequenas destilarias abundavam nas highlands e as ilícitas quase não existiam.
Vale lembrar que Chichester era membro de uma das famílias mais poderosas de Ulster, o que pode dar a entender que apesar se ser abastecido pelo patriotismo, os movimentos anti-impostos eram inflamados por motivos mais políticos do que patrióticos.
Mas voltando a um dos exemplos de angústias e ultrajes descritos no panfleto lemos que “no anos de 1810 o Sr. Eneas Coffey, que agora é um Inspetor Geral de Taxas e Impostos, tendo enviado parte dos militares sob seu comando para a apreensão [de alambiques ilegais], foi cercado juntamente com os militares restantes e desarmados por pessoas do povo perto de Culduff em Innishowen e o Sr. Coffey foi espancado até ser tomado por morto”.
Pois é, coletores de impostos sobre destilados precisavam de escolta militar para exercer suas funções do dia a dia. Uma recompensa chegou a ser oferecida para qualquer informação que levasse à captura dos agressores, mas não existem evidências de que alguém a tenha coletado.
Coffey respondeu ao reverendo com um panfleto de sua autoria, justificando a necessidade da taxação sobre qualquer destilado, e teve início um debate que durou anos. Por um lado a defesa da cobrança de impostos, por outro a defesa de que a lei era usada para que grandes empresas acabassem com destiladores locais e que o afrouxamento da cobrança acabaria com a produção ilegal. Coffey defendia seus empregadores enquanto Chichester tomava o lado dos pequenos produtores. Coffey era um empregado da Coroa, Chichester um defensor do povo. Coffey havia se tornado o porta voz dos coletores de impostos do Império.

Nesta época ele realizou várias viagens para Londres, supostamente para receber instruções do governo. Seus argumentos de defesa a favor dos impostos não eram muito convincentes, ele alegava que a lei apenas afetava distritos que promoviam o contrabando de bebida, ele também defendia a proibição da construção de pequenas destilarias. Chichester atacava a cobrança com todas as forças afirmando que o governo havia fechado uma pequena destilaria em Carrickfergus porque uma grande havia sido construída perto de Belfast por John Thompson em 1818, além disso oficiais de coleta pareciam negociar de maneira “irregular” com fazendeiros acusados de produzir whisky ilicitamente. Coffey parou de responder a muitas das acusações. E não ajudou sua imagem o fato de, em 1821, ele e outros oficiais, incluindo seu cunhado Logie, serem designados para supervisionar alguns experimentos na destilaria de Carrickfergus.
Esses experimentos tinha um objetivo duplo. O primeiro era manter a produção longe do alcance do destilador durante o processo de fabricação enquanto permitia que ele verificasse a graduação alcoólica, calor e cor do espírito que ele estivesse produzindo. O segundo objetivo era garantir que o conteúdo dos barris não pudesse ser desfalcado ou reduzido.
Em resumo a ideia era criar um método de se medir com maior precisão o que estava sendo produzido para se taxar de acordo, ao mesmo tempo se criar um sistema que evitasse fraudes, como por exemplo uma destilaria desfalcar parte da produção para poder declarar um volume inferior ao produzido e pagar menos impostos.
Para fazer isso um frasco de vidro com um hidrômetro foi colocado no fim do bico do alambique e então uma tabela foi afixada do lado de fora para indicar a graduação e um termômetro era usado para medir a temperatura.
Para evitar qualquer forma de contato com o líquido sendo produzido um cilindro de vidro foi colocado ao redor de tudo isso, sendo impossível removê-lo sem quebrá-lo.
Quanto ao segundo objetivo, os diferentes receptores foram cobertos com placas de metal parafusadas por dentro, cada uma tinha uma trava que consistia em uma bola que impedia que o barril fosse enchido acima de certo nível, a trava também tinha uma bola de cobre que servia como hidrômetro, se o destilado tivesse uma graduação maior do que a de costume, a bola afundaria e travaria a torneira.
Uma também máquina foi adicionada dentro dos containers que recebiam o destilado para que pudessem medir a quantidade de líquido assim que ele saísse do alambique. A ideia era tornar impossível que o produtor tivesse qualquer contato com que estava produzindo, ele passaria a ser apenas um operador e espectador do alambique. Qualquer um que tenha visitado uma destilaria hoje em dia está familiarizado com os cofres de espírito. Nenhuma gota poderia ser produzida sem ser taxada.
Coffey se empolgou e começou a testar em alambiques maiores com capacidade de mais de 1.800 litros. Ele fez novas mudanças impedindo que o mosto que seria destilado pudesse ser posto do alambique sem que fosse medido e registrado. Ao que parece ele fez tudo a seu alcance para se tornar sinônimo de “anal retentivo”.
O nome de Coffey continua a aparecer nos relatórios federais até 1824, quando surge o seguinte documento:
“Sexta-feira, 12 de março de 1824.
Æneas Coffey, Inspetor Geral de Impostos da Irlanda, tendo desejado licença para renunciar, como mostrado por sua carta de 20 de dezembro, é ordenado que tenha sua licença concedida”
E assim Coffey se despediu da vida pública, mas ele havia passado parte dessa vida, uma parte intensa, imerso no mundo da produção de álcool e isso deixou marcas nele. Durante uma década e meia ele testemunhou e se envolveu com a produção de whiskey e, como todo bom serial killer sabe, chega o momento em que apenas assistir e fantasiar sobre algo não traz mais alento à alma, é neste momento que começam a surgir as ideias e planos para colocar em prática aquilo que tanto nos fascina e que inevitavelmente vai nos fazer terminar os dias com as mãos sujas.
Existe um intervalo nos registros até o ano de 1827 quando surge uma compra de 800 acres de terra no Condado de Kildare por Coffey, Logie e Edward Mooney. Em 1828 ele cria a empresa Æneas Coffey and Co, que existe até hoje com outro nome, e em 1830 ele entra com a patente entitulada “Aparato para Fermentação e Destilação” onde ele se apresenta como Æneas Coffey, da Dock Destillery, Dublin, Destilador.
Essa primeira invenção de Coffey contém muitos recursos que fariam um engenheiro hidráulico chorar e gritar de alegria, impossível não pensar em seu pai, Andrew Coffey e em sua vida no departamento de águas como engenheiro encarregado dos obras hidráulicas de Dublin. A profusão de tubos e válvulas no aparelho contrastava violentamente com os alambiques de caldeira existentes que, quanto muito, possuíam uma serpentina de resfriamento.
A semelhança com o alambique Cellier-Blumenthal pode sugerir que Coffey tenha tido alguns contatos com destiladores franceses durante suas visitas a Londres em 1816 e 1818. Também é possível que Coffey tenha tido algum contato com Sir Anthony Pettier, de Cork, quando ele esteve lá a serviço.
No alambique de Pettier o líquido fluía gradualmente e continuamente sobre a superfície aquecida da caldeira enquanto se separava do vapor rico em álcool. O fundo da caldeira foi dividido por partições concêntricas suficientemente altas para evitar que o líquido fervido não transbordasse sobre elas, além disso possuía aberturas voltadas umas para as outras em lados opostos formando um labirinto. Ao fluir pelo labirinto, o líquido percorria toda a superfície
na parte inferior e quando mosto atingia o tubo de descarga no lado oposto, continha muito pouco álcool. Um sistema de correias varria os compartimentos evitando a deposição de sedimentos.
Coffey ainda inseriu dois canos em seu alambique para separar os espíritos fortes dos fracos durante a destilação – algo inovador na época – coletando as condensações mais altas e devolvendo o restante para a caldeira. Ele começava a brincar com o fracionamento.
A característica mais importante de sua patente ainda é a separação da porção de análise (correspondente aos Low wines) da coluna retificadora que produziu o espírito purificado. Seu alambique patenteado forçava a passagem do mosto rapidamente através de um tubo onde adquiria calor até atingir a temperatura de ebulição. Então ele fazia o mosto entrar em contato com os vapores e fluir de maneira ininterrupta e contínua sobre placas metálicas repletas de válvulas. Na sequência acontecia a verificação do mosto para se certificar que já estava exaurido de seu álcool. É provável que seu pai Andrew, agora na casa dos 70 anos, tenha contribuído para o projeto do sistema de tubulações.
Coffey recebeu os direitos da patente apenas para a Irlanda e por 14 anos. Por fim ele acabou incluindo no projeto um aparato que resfriava o mosto fermentado. Ele havia transformado um simples alambique de caldeira em um transformer steampunk.

Os registros da Dock Destillery posteriores a 1830 mostram que ela havia se tornado uma indústria de alambiques patenteados. Até 1834 Coffey tentou sem sucesso vender sua criação aos irlandeses, mas poucos que compraram se arrependeram – a superabundância de canos que brotava do equipamento eram feitos de ferro, o que dava um gosto ruim ao whisky – e os devolveram ao fabricante voltando a usar os alambiques antigos. Os registros sobre os pedidos de construção desses alambiques existem até hoje, apenas um deles foi encomendado para ser construído em Dublin mas ele não existe mais.
Coffey foi rejeitado e relegado ao esquecimento pelos irlandeses. Mas com o tempo ele seria vingado.
Em 1835 ele e sua família se mudaram para a Inglaterra e a empresa Æneas Coffey e filhos se estabeleceu na St. Leonard’s St. Logo começaram a chegar os primeiros pedidos por seu alambique patenteado e os negócios começaram a crescer, mas não sem dificuldades iniciais. No Dictionary of Arts and Manufacturers of Wines de 1875 lemos que:
“Sr. Coffee enfrentou muitos impedimentos e oposições das autoridades fiscais em sua primeira tentativa de introduzir esta invenção engenhosa para uso público; mas o preconceito e ignorância finalmente cederam, e o Coffey pode ser visto agora em operação em quase todas as grandes destilarias de grãos do reino.”
As primeiras encomendas substanciais surgiram em 1840 e entre os primeiros alambiques construídos em Londres havia um particularmente grande encomendado por Sir Felix Booth, explorador intrépido e destilador de gin.
Coffey morreu dia 26 de novembro de 1852 e seu filho mais velho, Coffey Junior, alguns meses depois. Os filhos restantes se encarregaram de continuar tocando a empresa mas o uso dos alambiques patenteados começou a diminuir e em 1868 Philip abriu mão do negócio da família e foi trabalhar como gerente da Thames Bank Destillery, em Pimlico, e deixou a Æneas Coffey e Filhos para o antigo capataz da empresa Sr. John Dore.
Æneas H. Coffey, o neto, trabalhou com a John Core & Co. Ltd. como consultor, chegando a ter um cargo como gerente em uma destilaria de alambique patenteado na África do Sul até o início da Guerra dos Bôeres. Ele morreu em Richmond, Surrey, em 1935. Os Coffey não estavam mais entre nós, apenas seus fantasmas e eles estavam prontos para transformar o mundo em sua casa assombrada particular.
Vamos entender agora, deixando todo o desenvolvimento técnico de lado, o que os alambiques patenteados, como o alambique Coffey ou coluna Coffey, tinham de tão incrível?
Em primeiro lugar, e mais importante talvez, eles eram a encarnação do mundo industrial que se formava. Eles eram máquinas que faziam um trabalho anteriormente manual e artesanal de forma mais rápida, mais eficiente, em maior volume e com necessidade de menos pessoas no processo todo além de extinguir etapas demoradas e custosas.
Lembra aquele papo de cevada maltada usada para criar um mosto com mais álcool, já que a malteação faz com que a semente libere enzimas que tornam o açúcar mais fermentável? A ideia por trás disso é tornar a destilação em alambiques de caldeira mais eficiente, já que ela é mais lenta. Você precisava destilar duas ou três vezes seu mosto para ter um resultado com mais de 60% de álcool, além disso precisava de carvão, gás ou lenha para manter o fogo aceso (e controlar a temperatura para não haver variações) e claro, você precisava investir um tempo malteando sua cevada, que levava de 2 a 5 dias dependendo das condições a que eram submetidas. Então você precisava esvaziar o alambique, limpá-lo e começar tudo de novo. A manutenção tembém are mais demorada e trabalhosa, você não podia deixar restos na caldeira, ela tinha que estar sempre livre – qualquer resíduo poderia queimar e dar um gosto extra desagradável ao que você estava produzindo.
O alambique de Coffey produzia espíritos que chegavam a 60% de teor alcoólico com uma única destilação, como funcionava com aquecimento a vapor seu combustível era significativamente mais barato e ele produzia mais de 9.000 litros de bebida por dia. Além disso ele precisava de muito menos manutenção, não corria risco algum de queimar a parte sólida da mistura em seu interior. E isso com mostos produzidos a partir grãos não maltados, o custo e o tempo da malteação desapareciam.
Mais álcool, menos tempo e menos funcionários para operar, era o sonho para qualquer dono de grandes empresas. E foram eles que se tornaram clientes de Coffey.
Mas nem tudo são flores, todo processo industrializado pode ganhar em performance e custo benefício mas invariavelmente abre mão de alguns detalhes, no caso do whisky aroma e sabor. Pense em vodka, ao menos nas industrializadas. O objetivo da vodka é ser o mais neutra possível, sem qualquer vestígio de aroma, cor ou sabor. Compre uma garrafa de Smirnoff ou Ketel One e faça uma degustação cega, são praticamente indistinguíveis. O whisky produzido em alambiques de coluna também lembra a vodka quase sem sabor ou aroma, fora isso ele é ótimo para os negócios.
Voltemos a 1877, 25 anos depois da morte de Coffey, quando algumas das destilarias escocesas se fundiram para formar a Distillers Co. Ltd e logo o dinheiro começou a voltar para a indústria de whisky. Nesse mesmo ano os alambiques patenteados começaram a ser instalados em todas as principais destilarias da Escócia.
A Irlanda, até então a capital mundial do whiskey, começou a sentir a concorrência escocesa.
Os whiskies misturados com o produto dos alambiques patenteados e colocados à venda eram muito mais baratos do que o whiskey produzido de forma artesanal pelo antigo sistema de alambiques de caldeira aquecidos diretamente sobre o fogo. Em 1878 as quatro maiores destilarias de Dublin se uniram para publicar um livreto entitulado As Verdades Sobre o Whisky – Truths about Whisky, onde os autores não pouparam esforços, e dignidade, para atacar o “fraudulento whisky escocês”. Eles questionavam a origem dúbia da matéria prima utilizada e os flavorizantes artificiais que “contém uma considerável proporção de amônia e, por esta razão, muitos deles são preparados à partir de esterco de cavalo, que oferece um suprimento barato do alcalino. É provável que creosoto, ou preparados semelhantes, sejam às vezes usados?”.
As destilarias escocesas diziam que o espírito produzido em seus alambiques patenteados era “silencioso” (etanol puro em solução aquosa), mas os irlandeses afirmavam que isso frequentemente “era um indicativo de suas origens… carregamentos de grãos estragados, carregamentos de arroz, carregamentos de batatas podres, colheitas inteiras de batatas infectas que antes seriam aradas juntamente com o solo de onde brotaram, além de refugos de melaço, são provavelmente a base deste tipo de comércio”.
Isso não era apenas inveja dos parentes do outro lado do mar. Muitos processos contra destilarias escocesas que estão arquivados no parlamento Inglês mostram que as acusações não eram inteiramente fictícias. As destilarias irlandesas chegaram a afirmar que o espírito “silencioso” escocês de origem dúbia era importado para Dublin e misturado com whiskey irlandês e o produto dessa abominação era comercializado sob um rótulo local.
No entusiasmo de seus ataques, as destilarias irlandesas parecem ter se esquecido que o alambique de patente era de origem… irlandesa. “Quase cinquenta anos atrás, um senhor, ‘Coffy’ inventou um alambique que pode ser descrito, de forma simples, como uma tentativa de combinar, em seu funcionamento, os dois processos: de destilação e de retificação”.
Mas o estrago estava feito. Gradualmente o gosto dos apreciadores de whisky começou a se afeiçoar do produto misturado, o blended whisky, e a destilação na Irlanda entrou um um severo declínio do qual começou a se recuperar apenas nos últimos anos. Em 1887 havia 87 destilarias oficiais pelo país (no mesmo ano eram 260 na Escócia e 12 na Inglaterra), em 2006 apenas 4 restavam e, de acordo com a Associação Irlandesa de Whiskey, em dezembro de 2019 o número destilarias em funcionamento chagava a 32.
Os irlandeses tentaram um último ato de defesa perante a Comissão Real em 1908 afirmando então que o nome Whiskey deveria ser reservado única e exclusivamente para os espíritos produzidos em alambiques de caldeira, para diferenciá-lo da imitação barata sendo produzida do outro lado do Canal do Norte.
Enquanto isso o alambique patenteado ganhava novos fãs e começava a ser usado para se produzir rum, vodka, arak e outras bebidas, foi apenas durante o século XX que os irlandeses o aceitaram e começaram a produzir seu whiskey nele – além de vodka e gin.
Se Coffey tinha algum ressentimento de seus compatriotas ele deveria estar em algum lugar com um sorriso etéreo nos lábios. É engraçado que Coffey, hoje um dos heróis do whisky, quase extinguiu a sua produção em seu país, tanto com seu trabalho como coletor de impostos quanto com sua invenção.
Talvez seja ainda mais engraçado que assim que seu alambique começou a ser usado surgiram os blends. Por que?
“O whisky de grãos é menos intenso do que o feito com malte, o sabor mais leve dos whiskies de grãos misturados com os maltes mais potentes e fogosos, criou um apelo muito forte para um mercado muito maior”. “Os whiskies produzidos em alambiques de caldeira tem um sabor muito mais forte para pessoas em ocupações sedentárias ou as que vivem em climas mais quentes. O novo produto misturado era mais adequado às condições da vida moderna.”
Essa desculpa pode colar em outros países. Vamos lá… a cachaça que bebemos aqui tem sabor “leve e suave”? Só produzem e bebem cachaça no sul do país? Os bebedores de rum e cachaça e gin da época que se criaram os blends devem rir quando ouvem isso.

Para tentar encontrar uma resposta menos evasiva vamos mergulhar na vida de outro mito da história do whisky: Andrew Usher.

Tá bom, você que pediu.
4- A ascensão da casa de Usher
A família Usher – “dinastia” também seria um título válido para ela – traça suas origens até Norman “Ussiers” que chegou na Grã Bretanha com William, o Conquistador, em 1066. Eles rapidamente se estabeleceram como parte da nova aristocracia que se formava e começaram a criar uma rede de estados e clãs que ainda existem até os dias de hoje no Reino Unido.
Os Usher se fizeram notar pela primeira vez na Escócia durante o século XIV como queridinhos do Rei Davi II e prestando serviços em nome da Coroa, apesar de alguns membros poderem ser considerados “ovelhas negras” como nos mostram os autos dos “Tribunais Criminais” de 1624:
“Adie Usher, nascido em Birkinhaugh em Liddesdale pilhou, juntamente com Robert Elliot de Redheugh e com seu filho Will Usher (idade 16) tantas ovelhas, bois, vacas e bodes de William Heron do Castelo Schewingscheill.”
Pilhou era um termo vago que poderia se aplicar a alguém roubando algumas ovelhas ou a um fim de semana estilo Viking alucinado. Pilhadores eram muito temidos por isso Adie foi enforcado e Will teve sorte de ser apenas banido e escapar da dor da morte graças a sua idade.
Pela metade do século XVIII a família estava muito bem estabelecida em Melrose, expandindo seus negócios ao redor do globo e consolidando o nome da família com a aquisição de Toftfield – hoje
Huntlyburn – e mais tarde comprando uma enorme propriedade residencial em Edinburgh, hoje conhecida como a Nicholson House, mas localmente chamada de A Casa da Pereira – The Pear Tree House – por causa das duas enormes árvores que cresciam na frente da construção.
James Usher (1738-1816) foi um filho único e talvez tenha sido sua solidão ou a falta de irmãos que o inspirou a ter 12 filhos, o décimo foi Andrew, nascido no 1º de abril e que teve fama de palhaço a vida toda.
Talvez sua palhaçada mais legal tenha sido fundar, em 1813 a Andrew Usher & Co, uma companhia de destilação e blending, o resultado de anos de experiências misturando whiskies de grãos e malte. Como a destilação comercial havia se tornado recentemente legalizada – talvez Chichester dissesse: “é fácil quando se é rico e a destilaria é grande! Queria ver se fosse um ‘Zé Povinho'”, mas nunca saberemos – grandes avanços estavam sendo realizados, surgiam novos alambiques patenteados a cada instante e na Escócia o mais popular dentre eles o alambique Coffey.
Como vimos a invenção de Coffey permitia que whisky fosse destilado 24 horas por dia, 7 dias por semana, em grandes quantidades. De acordo com os fabricantes de whisky aquele alambique era a obra de um gênio, mas tinha apenas uma pequena falha: o whisky que ela produzia era praticamente intragável.

Foi então que Usher começou a adicionar pequenas doses de single maltes, mais caros, ao destilado de grãos produzido pelos alambiques Coffey e acabou descobrindo um novo produto que era:
A) Barato
e
B) Razoavelmente próximo dos whiskies que circulavam pelo país – podia não ser tão bom quanto, mas ao menos era bebível
Andrew teve um filho que batizou de… Andrew. Andrew II e seu irmão, John, se tornaram sócios da empresa em 1840. Eles continuaram a aperfeiçoar o produto e ele se tornou um hit – não apenas na Inglaterra e na Irlanda, mas no mundo todo e os Usher fizeram sua fortuna. A história de Andrew II é bem conhecida hoje e ele acabou sendo conhecido como “O Pai do Whisky Escocês”.
5- Blended Whisky: ame-o ou aprenda a amá-lo
E o resto, como dizem, é história.
Os blends nasceram como típicos filhos da revolução industrial. Os alambiques, que se tornaram muito populares a partir do século XVI, não eram usados tentando se criar uma bebida incrível, eles eram ferramentas utilizadas para se criar produtos químicos melhores.
As pessoas envolvidas com o BOOM do whisky, de Coffey a Usher, passando por merceeiros que começaram a criar seus próprios whiskies, não estavam tentando criar uma bebida agradável, pelo contrário, eles queriam tornar palatável uma bebida extremamente barata que estavam produzindo aos milhares de galões por dia.
O novo whisky de grãos tinha duas vantagens sobre os single maltes sendo produzidos:
- Eram muito mais baratos (já dissemos isso umas 30 vezes, eu sei)
- Eram produzidos em quantidades industriais
- Tinham por trás deles fortunas que, de uma forma ou de outra, tinham grande impacto em distribuição e logística (ok, eram 3 vantagens)
Assim Chichester não estava errado ao dizer que as leis de impostos da época favoreciam os grandes produtores, e que todas as inovações intimidavam os pequenos. As indústrias de Blend estavam para as destilarias de single malte, mesmo as recém licenciadas e dentro da lei, como a Fanta-Laranja estava para pequenas casas que vendiam suco de laranja para as pessoas do bairro, independente da qualidade de suas características ele existia em maior quantidade e chegava a lugares mais distantes. Enquanto um blend produzido por Usher poderia chegar à Austrália, um single malte produzido pela destilaria Glen Ord nas highlands conseguia chegar… nas highlands.
Era como se uma represa de blended whisky estivesse só esperando uma chance para arrebentar e inundar o mundo. E essa chance veio como um presente de Deus, ou uma praga de proporções bíblica se preferir, que quase levou as videiras de todo mundo à extinção, fazendo com que os europeus arrancassem suas plantas pela raiz.
No final do século XIX o intercâmbio entre o Império (Inglaterra) e suas ex-colônias (Estados Unidos) ia de vento em popa e entre outras coisas que eles trocavam eram plantas. Algumas dessas plantas vieram com um brinde secreto, tipo um Kinder Ovo de Satã, um inseto quase microscópico – variando de 0,3mm a 3mm de comprimento – chamado filoxera-da-videira que vivia camuflado nas raízes.
O mundo mudava, como a produção de whisky tudo ficava maior e mais rápido, inclusive os navios. Os novos navios à vapor eram tão rápidos, para os padrões da época, que conseguiam atravessar o oceano antes que os insetos morressem e quando chegaram no mundo antigo se depararam com algo novo para eles: vinhedos europeus. E eles se tornaram fãs de vinho europeu, ou melhor, de vinhas.
Em cada novo vinhedo que pousavam levavam as plantas à morte e os danados eram tão rápidos e eficientes que fariam inveja aos exércitos de Napoleão. Eles podiam ser transportados de um vinhedo para outro por meio de qualquer material botânico (como podas, mudas, rizomas, folhas e brotos), terra, maquinário (equipamentos e veículos), cachos de uvas, produtos vinícolas (mosto e suco de uva), e até mesmo por pessoas e roupas. O primeiro vinhedo a decretar a filoxera-da-videira, em 1863, se localizava no sul da Inglaterra. Em alguns anos ela aparecia na França, Turquia, Itália, Portugal e Espanha. Por volta de 1878 40$ após a perda de 40% das videiras na Europa tinham sido exterminadas. O vinho começou a desaparecer. Eventualmente começaram a importar videiras americanas – naturalmente resistentes à praga – mas elas levariam mais de 10 anos para começar a produzir vinhos com uma qualidade que lembrasse os antigos.

E um mundo sem vinho é também um mundo sem brandy, sem Jerez, sem vinho do Porto. Um mundo cheio de pessoas sem suas bebidas favoritas e procurando desesperadas por uma nova bebida favorita. E na Escócia um oceano de whisky barato estava esperando um novo mercado surgir. 1 + 1 = 2.
6- Os filósofos renascem das cinzas
Assim não foi uma nova bebida mais leve e agradável que conquistou o gosto das pessoas sofisticadas do mundo. Não foi a transformação do single maltes em algo menos brutal que finalmente fez a bebida ser aceita. Foi a falta de opção.
A história do whisky nesta época poderia ser um vídeo do Chico Science, os ricos ficando mais ricos e os pobres tendo que vender para os ricos para sobreviver e um bando de urubu fumando charuto e uns caranguejos no mangue. Não foi um problema de inconsistência foi a última opção desesperada.
E sim, as pessoas começaram a gostar dessa nova bebida – não que tivessem outra opção – e a consumi-la em maiores quantidades. Mesmo hoje grande parte dos single maltes a que temos acesso só chegam a nós porque as destilarias que os produzem fazem parte de grandes conglomerados multinacionais. Conglomerados que seriam criticados por Chichester e para os quais Coffey mandaria alegremente seu currículo.
Mas… a história não termina ai. Aqueles merceeiros citados lá em cima começaram a virar o jogo. Seu mundo estava repleto de blends razoavelmente próximos dos whiskies que circulavam pelo país – podiam não ser tão bons quanto, mas ao menos eram bebíveis – e eles decidiram fazer algo a respeito.
John Walker, James Buchanan, John Dewar, os irmãos Chivas, William Teacher, William Sanderson, Arthur Bell, George Ballantine, William Gloag, William Grant, William Cole, James Logan entre outros decidiram entrar no jogo mas com objetivo de criar um blend que fossem melhor do que outros blends do mercado e que pudesse competir de frente com os single maltes existentes, eles queriam criar algo novo e único.
De certa forma anacrônica era como se estivessem respondendo a Stephen Hawking, dizendo que a paixão por se criar uma alma ao invés de um mero produto não estava morta. Os filósofos estavam se erguendo e criando suas bebidas.
Seus blends usavam o whisky industrial de grãos como tela em branco e buscavam nos single maltes aquilo que tinham de melhor e então recombinavam. Eles não queriam um Glenlivet diluído em álcool etílico potável apenas para dar gosto a algo sem graça e intragável, eles queriam criar uma bebida que não existia até então, com sua própria complexidade, sua própria mensagem. Existe prova maior disso que dar o próprio nome à garrafa que estavam vendendo? Muitos deles na verdade não batizaram seus blends com o próprio nome, os primeiros blends de John Walker era chamado de Old Highland Whisky, e os primeiros de James Buchanan vinham em uma garrafa preta com os escritos em branco, eventualmente evoluiu para o Black and White. Mas todos assinavam suas criações, tinham orgulho delas.
Muitos deles abusavam, chegando a colocar mais de 50% de single maltes em suas misturas. Eles buscavam equilíbrio, graça, delicadeza e sim, também buscavam consistência. Um Old Highland Whisky vendido hoje tinha que ser o mesmo que o vendido mês passado e o que seria vendido ano que vem. Aquele era a criação deles independente do tempo e eles estavam dispostos a melhorá-la ainda mais, descobrindo whiskies de grãos de melhor qualidade, buscando single maltes mais saborosos. Eram compositores escrevendo novas sinfonias e as engarrafando.
Claro que todos eles criavam seus whiskies para serem vendidos, milionários e pés rapados, por incrível que pareça, ainda precisam fazer dinheiro para viver, uns mais outros menos, mas todos jogam o jogo. O ponto importante aqui não é se os criadores de blends jogaram para enriquecer ou não. O importante é que eles jogaram com paixão, tanta quando os destiladores de single maltes.
E ai entra o problema citado lá no começo: comparar o blend com o single malt em pé de igualdade.
“Mas mesmo assim single maltes são melhores!”
Isso soa a mesma coisa que comparar uma laranja com um limão, “Mas mesmo assim a laranja é melhor, é mais docinha!” Claro que é. Laranjas sempre serão mais doces do que limões, são frutas diferentes.
Existem blends melhores que single maltes, single maltes melhores do que blends, bourbons melhores que single maltes e whiskies japoneses melhores que bourbons. E sempre vai ter um degenerado dizendo que tem uma vodka ou um gin que é melhor do que todos, fazer o quê? Vivemos em um mundo livre.
Bônus:
Este é para os whiskynerds, para os destiladomaníacos, para os alambiqueiros extremistas!
Aqui tem um PDF com o pedido de patente original de Coffey, apenas a última página foi editada para a imagem aparecer na vertical.
Divirtam-se.