
A década de 1960 foi uma época assustadora e excitante para os amantes brasileiros de whisky, na verdade até hoje é meio assustador e excitante ser um amante brasileiro de whisky, mas naquele então o mercado estava literalmente afogado em falsificações graças às dificuldades e aos preços exorbitantes envolvidos na importação de whisky. Bom, na verdade hoje em dia as dificuldades e os preços altos permanecem uma constante quando o assunto é a importarção de whisky… uhmmmm.
Mas, deixando as reflexões de lado e voltando à história, em 1959 um fabricante de rolhas, Mario Amato, e um de seus clientes decidiram se meter em uma experiência e dessa brincadeira nasceu o primeiro whisky brasileiro, o Drury’s. A resposta do público foi tão surpreendente que logo Amato teve que comprar uma destilaria em Sorocaba para dar conta da produção.
Pulemos para 1965 quando Fabrizio Fasano entrou em cena. Ele havia notado que havia um gap, uma lacuna se preferir, entre os whiskies importados e o Drury’s – que na época era fabricado com maltes e destilados de grãos envelhecidos entre 4 e 5 anos – e em 1966 ele preencheu essa lacuna lançando o Old Eight, um blend produzido com whiskies envelhecidos 8 anos, metade deles importados da Escócia, metade produzidos no Brasil.
Antes que comecem a fazer caretas e maldizer esses pobres destilados pense no que estava acontecendo na época: brasileiros criando blends. Era, de certa forma, como ver John Walker ou John Dewar criando seus famosos whiskies.
E pense também que os tempos e os whiskies eram outros! A produção de Fasano, que começou com 200 mil caixas de 12 garrafas por ano, logo pulou para 1 milhão de caixas e foi necessária a expertise de Mario Amato, Emídio Dias Carvalho e Albert Bildener, para dar conta do recado.
Em 1973, a Heublein do Brasil que iniciava suas atividades no país adquiriu a Fabrizio Fazano & Cia. e o Old Eight.
Fasano conta que “Recebi 5 milhões em um só cheque. Naquele tempo, não havia tanto dinheiro em circulação. Isso era uma tremenda bolada”.
Essa valor, corrigido para os dias de hoje (2021) chegaria a mais ou menos U$33.500.000, basta multiplicar por 5.4 e você vê quantos reais seriam, nada mau para um whisky nacional. Para ter um comparativo, pense que a Glenlivet foi comprada pela Seagram’s por quarenta milhões em 1978.
Posteriormente Fasano se envolveu com a criação de outro whisky, o Brazilian Blend, mas devido a problemas na produção a bebida embranquecia na garrafa, todo o material vendido foi recolhido. Mas as portas estavam abertas, em 1969 chegou o Bell’s, o primeiro scotch engarrafado no Brasil, um ano depois chegaria o Passaport. O futuro parecia promissor!
Mas ai algo aconteceu, o caldo azedou, enterraram uma carcassa de bode em algum lugar, costuraram o nome do whisky nacional na boca do sapo… vai saber. Ao invés da indústria ir ampliando o portfólio e as bebidas começarem a ter mais qualidade o progresso resolveu dar ré ou, como o título daquela coletânea de Calvin e Haroldo: O progresso científico deu TILT!
A história do whisky nacional é como aquelas fotos tiradas pela polícia de pessoas viciadas em crack ao longo do anos, se deteriorando e ficando esquisitas.

Hoje o Old Eight não tem idade declarada, o 8 ficou apenas como parte do nome, tem teor ácoólico de 38% e além de maltes e whiskies de grão tem uma boa dose de álcool etílico potável (envelhecido e novo) em sua mistura, além de dois corantes. E parece que todos os grandes produtores de whiskies brasileiros adoraram essa receita e acharam essa a melhor ideia do mundo. E se você acha que as coisas não podiam piorar:

OK! só não chama de whisky!
De acordo com a legislação brasileira essas m̶o̶n̶s̶t̶r̶u̶o̶s̶i̶d̶a̶d̶e̶s̶ bebidas podem ser chamadas de whisky, mas no mundo real acabam virando coisas totalmente diferentes.

Como era de se esperar essa caminhada para o Inferno acabou manchando o nome dos whiskies nacionais e de alguns que não era nacionais mas tinham um pé no Brasil, como aqueles fabricados e envelhecidos na Escócia e apenas engarrafados por aqui ou aqueles fabricados no exterior para serem vendidos apenas em alguns países como o nosso, Passaport é um exemplo.
Hora de sacudir a poeira e dar a volta por cima
Mas não há motivo para pânico, caros irmãos e irmãs! Existe hoje um farol brilhante de esperança em meio ao caos e escuridão de álcool etílico potável que nos cercam. Recentemente um movimento que busca voltar a fazer whisky de qualidade está se fazendo notar, destilarias como a Lamas, a Union além de experimentos como o whisky cigano* Code 9, estão mostrando que o whisky nacional não pode ser apenas bom, ele pode ser surpreendente!
O single malte sobre o que vamos falar em breve, o Caledônia, é produzido pela Lamas – se você ainda não conhece a Lamas aqui tem a entrevista que eles deram para nosso site. Além de um portfólio de 4 whiskies – um blend e três single maltes, ou puro maltes como chamamos aqui – eles lançam garrafas de séries limitadas, como o Magnus, feito com cevada defumada e finalizado em Amburana e o Caledônia, nossa estrela.
Para quem não sabe o Caledônia não é apenas um whiksy é um bar aqui em São Paulo que abriu no final de 2019 – se bem que o nome “bar” não faz jus ao local. Durante o dia você encontra lá uma loja com mais de 120 rótulos à venda, praticamente todas as marcas importadas oficialmente no Brasil, e à tarde a parede de garrafas se abre, como uma passagem secreta para um mundo etílico mágico, uma Nárnia para adultos, e você vê o salão com balção baixo, algumas mesinhas e as mesmas 120 marcas – acompanhadas de outros tipos de bebidas e um cardápio mais do que competente – prontas para serem bebidas in loco. Na verdade o Caledônia é um espaço, o nome “templo” fica voltando à mente, dedicado ao whisky criado por dois amantes da bebida, Mauricio Porto e Guilherme Valle.

E o que uma coisa tem a ver com a outra? O whisky Caledônia é o resultado – exclusivo e limitado – de uma parceira entre o Maurício e a Lamas, daí o nome do templo… que dizer, do bar e o logo estampados na garrafa. E assim como o bar, o whisky é inesperado, surpreendente e causa impressões profundas.
Como se cria um whisky! Na visão de Maurício Porto.
Eu sempre achei esse tipo de parceira fascinante, trabalhando com marketing já participei com várias ações de co-branding, mas nenhuma nunca chegou perto dessa. Você conseguir criar um whisky, para mim, é muito mais incrível do que criar um Nike Air Jordan, por exemplo, é algo como um Dr. Frankestein que ao invés de sair cavando cadáveres em cemitérios sai fuçando barris em destilarias. O que posso afirmar com certeza é que depois do quinto, ou sexto, copo de Caledônia comecei a fuçar para descobrir como falar com o Maurício.

Não demorou muito e estávamos conversando por WhatsApp e eu perguntei como tinha sido a criação do Caledônia (whisky).
Eu falei pra Lamas a “gente podia fazer um whisky juntos” e eles toparam.
Eles entraram em contato comigo e perguntaram: “como você gostaria de fazer o whisky?”e eu fui dando as diretrizes.
“Acho que a gente podia envelhecer ele em algum [barril de] vinho, acho que ele podia ter esse perfil meio ‘bowmorzinho'”. E eles foram criando e conforme criavam iam me mandando amostras.
Mas o acerto do blend de 75% do Nimbus com 25% do Verus, no final das contas, foi um acerto deles.
Então veio a questão da maturação a gente foi deixando o blend em um barril de vinho licoroso para atingir o equilíbrio e quando chegou num equilíbrio eu falei “acho que tem que deixar mais” mas eles responderam que se deixasse mais o whisky poderia passar do ponto porque o abv subiria.
E como o desenvolvimento foi à distância, começando de um lado, indo para o outro e voltando de novo, como num jogo de tênis, eu acho legal você entrevistar eles, para ter o approach inteiro da produção do bicho.
Para encerrar o papo eu filosofei: eis ai a diferença entre homens e garotos. Garotos sonham em sair um dia com uma modelo da Victoria’s Secrets, homens fazem seu próprio whisky!
“Hahahaha nunca sai com uma modelo da Victoria’s Secrets, mas deve ser chata pra caralho porque não bebe whisky, então tudo bem!”
Eu estava na frente de alguém que era praticamente um Jedi, Yoda não teria dito melhor, e quando um Jedi fala a gente ouve. Magister Dixit, como diriam na Roma antiga ou, adaptando à situação, canem latrante! Fui atrás da Lamas para pegar a versão deles da “produção do bicho”.
Como se cria um whisky! Na visão da Lamas.
Devore meu cérebro – Como foi o contato de vocês com o Maurício?
Lamas – Foi no Bar Convent de São Paulo, em junho de 2019. Tínhamos um acanhado stand na feira, no meio das gigantes multinacionais (risos).
O Maurício passou por lá, degustou as nossas bebidas e levou várias pessoas para degustar. Ele (assim como o Jim Murray) achou o Nimbus bastante diferenciado.
Ele conversou sobre a Lamas com um dos sócios e logo publicou um artigo no seu blog “O Cão Engarrafado”.
DMC – A ideia de criar o Caledônia veio de vocês ou dele?
Lamas – O conceito da bebida Caledônia foi 100% criação do Maurício – finalizar o Nimbus em barris de carvalho europeu, ex licoroso. Nós contribuímos com uma sugestão de blends de maltes e com a arte do rótulo, para não dizer que não fizemos nada (risos).
DMC – Como foi o processo de criação e aprovação?
Lamas – Em nossas conversas na feira e pós-feira, o Maurício sugeriu a finalização do Nimbus em barris de carvalho europeu ex Porto.
A Lamas acatou a sugestão e quase um ano depois de ficar neste novo barril enviou amostras com diferentes graduações de ABV para que o Maurício determinasse o que mais lhe agradava. Ficamos um tempo entre 46 e 54 ABV. Por fim, ele elegeu 50 ABV.
Como 50 ABV representava uma diluição menor do que o Nimbus (de 43 ABV), o sabor do defumado sobressaiu muito e deixou o whisky desequilibrado. Sugerimos então que fosse feito um blend entre 75% deste novo malte com 25% do Verus (a 50 ABV). O casamento destes dois maltes deu origem ao Caledônia!
Convidamos o Maurício para escrever o descritivo da bebida no rótulo e fizemos um acordo para chamá-lo de Caledônia. Era o mínimo que poderíamos fazer: uma pequena homenagem e retribuição à pessoa que sempre nos prestigiou e aceitou também o desafio de colocar seu nome e do seu estabelecimento em um whisky nacional. Foi uma grande honra para a Lamas estabelecer esta parceria com um dos mais renomados especialistas em whisky no Brasil. O sucesso foi tanto, que pretendemos lançar uma nova edição do Caledônia em breve, da mesma forma, através de experimentações e contribuições mútuas, especialista/destilaria, construídas num propósito comum, que é a busca pela excelência e raridade. É muito gratificante e motivador trabalhar com uma pessoa como o Maurício.
DMC – Como foi que chegaram na mistura dele, no abv?
Lamas – Como descrito no item anterior: a destilaria enviou amostras de diferentes ABV e quem definiu qual seria utilizado foi o Maurício através de análises sensoriais.
DMC – Quanto tempo levou desde o nascimento da ideia até a primeira garrafa cheia
Lamas – 15 meses.

E agora vamos ao whisky!
Destilaria: Lamas
Tipo: Single Malt
Idade: NAS
Região: Minas
ABV: 50%
Preço: R$230,00 (jan 2021)
Notas:
O Caledônia é um single malte, ou puro malte de acordo com nossa legislação, mesmo sendo o resultado da mistura de outros dois whiskies. Lembre-se que se todos os maltes forem destilados em uma única destilaria eles podem ser misturados. Se a Bruichladdich misturasse o Octomore, o Port Charlotte e o Bruichlladich em uma garrafa o resultado ainda seria um single malte e não um blended malte.
Ele foi criado a partir de dois whiskies altamente conceituados, o Nimbus que recebeu 93 pontos na Bíblia do Whisky de Jim Murray e o Verus que recebeu 87 pontos, e o blend – ou o vatting, como dizem as destilarias que produzem single maltes – recebeu uma finalização em barris europeus ex vinho licoroso – estilo Porto – por quase um ano. A garrafa é de 1 litro e vem com abv de 50% o que a torna uma ótima compra.
Assim que abri a garrafa e servi a primeira dose fui sentir o aroma. BACON BACON BACON, um oceano de Bacon com ondas de Bacon por todos os lados! Os outros aromas quase perdidos no fundo. O gosto do defumado nos primeiros copos também veio muito forte. Isso não é um ponto negativo, mas foi o primeiro “alô” que recebi da bebida.
Eu fechei a garrafa e a deixei 4 dias na prateleira antes de abri-la novamente, desta vez o whisky havia evoluído, o defumado estava muito mais comportado e todos os sabores e aromas surgiram com uma harmonia impressionante, esse é um whisky que muda com o tempo e muda para melhor e presenciar isso é muito legal.
Um ponto importante é que parece que o defumado não é feito com turfa, então se você já bebeu um turfado porrada como o Ardbeg Uigeadail ou o Lagavulin 16 não espere o mesmo tipo de defumado, também é diferente do Johnnie Walker Double Black, que tira seu defumado extra da torra dos barris e dos vincos que fazem neles, o Caledônia é uma experiência nova.
Outro ponto é que aqui no Brasil as variações de clima e temperatura fazem a bebida respirar de forma diferente no Barril, existe uma troca mais intensa entre o líquido e a madeira, e no Lamas isso é extremamente positivo, o trabalho de maturação e finalização foram excelentes. Os barris usados são de ex bourbon e barril europeu que teve antes vinho licoroso tipo vinho do Porto.
50% de teor alcóolico foi um acerto! E como em todo bom whisky não parece que você está bebendo algo em que metade do que tem no copo é álcool puro. Algo que eu gosto em bebidas com abv mais alto é a maneira como a bebida parece ir esquentando a língua enquanto você sente o sabor, e pode deixar ela o tempo que for! Vai ficar mais quente.
Então tenha isso em mente: se achar o defumado assustador de início deixe o whisky fazer sua mágica no copo por alguns minutos e volte a prová-lo. Uns dias na garrafa também ajudam ele a se comportar. Por ser um 50% ele aceitam bem um pouquinho de água para revelar aromas e sabores mais sutis.
No nariz:
Defumado, defumado forte, bacon, cinzas, madeira… lembra um pouco incenso queimado há algum tempo. De dentro da fumaça começa a surgir iodo, para alegria dos fãs de Islay, e o iodo traz junto algo doce. O barril americano que estava tímido começa a chamar a atenção e quando você descobre o dulçor dele começa a notar frutas, mas não frutas frescas exatamente… algo como geléia de frutas vermelhas e doces, eis o barril de vinho dando seu alô, cobertas de pimenta preta moída na hora. Baunilha e caramelo curiosamente salgado – esse salgado picante junto com o defumado é que parece virar o bacon. É o tipo de aroma que já faz a boca salivar em antecipação
Na boca:
O doce e o picante chegam primeiro. Geléia de frutas defumada. Ameixas defumadas. Esse doce com o iodo quase evocam um sabor de alcaçuz, aquele gosto quase medicinal. O picante continua presente. O álcool queima mas é muito redondo, nenhuma aresta aparente. Um salgado está ao alcance o tempo todo, complementando o doce. Depois de uns goles se voltar a cheirar você ultrapassa o defumado do aroma e mergulha no doce apimentado.
Este é um daqueles whiskies que parece um beijo apaixonado, mesmo depois que terminou você ainda o sente na boca, o final é longo, defumado que vai ficando mais doce conforme se estica te deixando uma lembrança da madeira e da cevada.
Se você gosta de fumar enquanto bebe, seja um Marlboro ou um Cohiba robusto ou um cachimbo, este whisky é perfeito: o sabor do tabaco não ofusca o da bebida e vice-versa.
Minha consideração final é que já estou me programando para comprar outra garrafa, o fato de ser uma edição limitada cria aquela aflição de que logo logo este whisky não vai estar mais por ai para ser bebido.
Quer garantir o seu? Corra, no Caledônia – o bar não o whisky – ainda tem algumas garrafas. Você pode comprar a garrafa ou doses para provar, e pode acessar a loja virtual clicando aqui!

[*] O termo whisky cigano veio do mundo da produção de cervejas, acontece quando uma cervejaria – ou no caso do Code 9 uma destilaria – que loca sua capacidade ociosa para terceiros. No caso a Xanadu, empresa de Bruno Mafra que passa a elaborar a receita e supervisionar a produção.