
“O desjejum é a bebida mais importante do dia.”
Meu avô dizia isso.
“Seu avô tem apenas um olho, ele não fala besteiras. Ouça o que ele diz!”
Isso era meu pai quem dizia.
E aquilo não era a única coisa que meu avô, que de fato tinha apenas um olho, costumava afirmar.
“Você bebe cerveja quando é moleque. Mulheres e rapazes que gostam de fazer as unhas bebem vinho; gente tresloucada e pessoas que não gostam de álcool bebem coisas coloridas cheias de pedaços de frutas e gelo, coroadas com guarda-chuvas de papel. Agora, para beber whisky você tem que ser homem!”
E ele não dizia essas coisas por ser machista ou misógeno, longe disso.
“E quando falo homem, estou falando de alguém que defende a família, que briga com os próprios punhos, que sabe o que é levar uma facada, alguém que não tem frescura, que sabe reduzir uma fratura… alguém que seja Homem com ‘agá maiúsculo’, homem como nossas avós eram!”
E de seu lugar na parede acima da lareira, emoldurada por um caixilho barroco de madeira cheio de reentrâncias cobertas pelo pó que o espanador não conseguia espanar, minha trisavó nos encarava com seu único olho. Seu olhar grave e severo atravessando gerações e questionando nossa hombridade.
Por esta época descobri duas coisas:
1- A palavra de meu avô não era considerada lei. De forma alguma.
e
2- O mundo, a sociedade e as pessoas (e mesmo o universo) são regidos por leis. Mas por trás dessas leis existe algo com uma natureza muito mais complexa – uma matriz de conceitos puros e poderosos de onde nascem as leis que regem o mundo. Conceitos que não obedecem a nada nem se dobram a ninguém – e o whisky era um deles.
Não que fôssemos bêbados, muito pelo contrário! Bêbados se embriagam com desodorante, álcool de cozinha, pinga industrializada e outras porcarias quando ninguém está olhando e estão desesperados. São como aquelas pessoas que vão para Spas de emagrecimento com vidros de xampu cheios de leite condensado escondidos na mala.
Nós não éramos bêbados e eu vou tentar ser claro neste ponto, claro como um destilado filtrado a frio sem adição de E150.
Nós tínhamos uma missão, era simples assim.
“O whisky é uma das formas mais puras de religião.”
Meu pai dizia isso.
“Ele é a Água-da-Vida, chegava aos gentios pelas mãos de religiosos que o produzia em mosteiros, era reverenciado como um espírito por reis, governantes e plebeus. Orquestrava revoltas e revoluções. Você tem que aprender a respeitar o Whisky!”
Talvez eu não entendesse tudo o que ele me dizia na época, mas eu sabia que aquilo era sério, verdadeiro… angular. Afinal, como já devem ter imaginando, meu pai também tinha apenas um olho, ele não falava besteiras.
“Mas como você sabe dizer qual whisky tem no copo só de experimentar? Sem ver a garrafa?” Perguntei certa vez. Eu achava que conseguir realizar tal proeza era como ter um super-poder.
“Isso não passa de um truque de festas. Qualquer afetado pode aprender a fazer isso!”
Dizia meu avô.
“Os exibidos gostam disso” Dizia meu pai “Cuidado para não virar um bosta. Se dedique ao que é importante e você vai aprender a dominar a Arte como ninguém. Os espíritos virão conversar com você de livre e expontânea vontade. Lembre-se disso, não seja um bosta.”
Aquilo me quebrou em pedaços. Eu não queria ser um bosta, é claro, mas por que estudar as garrafas e as marcas e os rótulos me tornaria um?
“Não fique chateado, querido. Seu pai e seu avô não te chamaram de bosta, apenas te alertaram e fizeram isso em pé de igualdade. Falaram com você como falariam com um amigo e não com uma criança. Entende isso? Eles estão começando a te tratar como alguém que possam respeitar no futuro. Preste atenção nisso e não desanime. Assim como eu, eles também enxergaram isso em você!”
Minha mãe me consolava.
“O que eles enxergam em mim?” Perguntei a minha mãe.
“O brilho no seu olho, meu amor!”
Naquela noite não consegui dormir, havia algo dentro de mim que poderia, com tempo e dedicação, vir a ser uma fonte de respeito para meu avô e meu pai – e talvez de minha trisavó em cima da lareira. Eu conseguia sentir aquilo, o que quer que fosse, se agitando como algo real em minha mente, começando a tomar forma até que um dia eu pudesse servi-la para o mundo.
Fiquei acordado no escuro relembrando as palavras de minha mãe sem conseguir pregar os olhos.